Nas Asas do Mercúrio

NAS ASAS DO MERCÚRIO

Nas Asas do Mercúrio

O mercúrio apresenta-se geralmente na forma de pequenas bolas de cor branco-estanhadas, a exsudar sobre o mineral que mais comumente contém este elemento – o cinábrio. É assim chamado em honra de Mercúrio, o mensageiro dos deuses, e tem como símbolo químico Hg, que deriva da sua designação latina, hydragyum – prata líquida.

Apesar da sua conotação divina, o mercúrio é um metal bastante perigoso para o homem: embora tenha uma densidade bastante mais elevada do que o chumbo, dá origem a vapores extremamente tóxicos a temperaturas acima dos 20ºC. É por esse fato que a quebra de um termômetro de mercúrio num recinto fechado é extremamente nociva, tendo por isso vindo a ser banida a sua utilização em detrimento dos termômetros digitais. Refira-se ainda que a ingestão e/ou a inalação continuada de mercúrio origina uma doença gravíssima que dá pelo nome de síndrome de Minamata.

O mercúrio ocorre na crosta terrestre com raridade e encontra-se em geral ou em zonas de redução de jazigos de cinábrio ou perto de vulcões – como exemplo de alguns jazigos clássicos temos Moschellandsberg, na Áustria, o Monte Amiata, na Itália e Almadem, em Espanha, um dos usos correntes do mercúrio era o de fazer parte do calamelo, um emplastro que supostamente curava as doenças venéreas tais como a sífilis e a gonorréia.

Com o Renascimento, o seu uso enobrece-se: em 1554, um alquimista alemão descobre que os metais preciosos, como o ouro e a prata, formavam misturas íntimas com o mercúrio – as chamadas amálgamas – num processo facilmente reversível. Testemunha da importância desta inovação técnica, o processo, após ter sido aperfeiçoado por Bartolomé de Medina, é imediatamente usado pelos espanhóis para processar todo o minério argentífero do Novo Mundo.

Com a inovação de Medina, os sulfitos de minério, anteriormente desaproveitados, passam a poder ser refinado, o que leva a um acréscimo substancial da recolha de prata pura (que chega a ser de sete vezes mais a quantidade obtida pelos processos antigos). Assim, os recursos em prata americana – quase esgotados desde 1550 – acabariam por ser utilizado por ainda mais três séculos.

Basicamente, neste processo de Medina, o minério argentífero é reduzido a pó e combinado com mercúrio, água, sal gema e barro, sendo a massa resultante agitada durante um dia e deixada a repousar durante dois dias. O processo é então repetido durante cerca de 20 dias, havendo adição de mercúrio à medida das necessidades. Após a remoção da água, do sal e do barro, a amálgama de mercúrio e de prata era colocada em cadinhos e aquecida, para que o mercúrio se evaporasse e ficasse apenas a prata, que voltava ao fogo para posterior refinação. Este método só foi considerado obsoleto em finais do século XIX, altura a partir da qual se passou a utilizar cianeto na extração da prata mineral – o que dá na mesma para os escravos e os nativos utilizados na mineração, já que estes acabam por morrer agora por exposição ao cianeto e já não pela inalação de vapores de mercúrio.

Voltando ao que nos interessa: de onde saía o mercúrio, peça-chave deste processo? Essencialmente de duas minas: a de Almadena, em Espanha, explorada desde o tempo dos romanos, e a de Huancavelica, no Peru, naquilo que não era mais do que um feroz monopólio da Coroa Espanhola.

É assim que a partir de meados do século XVI se começa a embarcar mercúrio a bordo de navios, especialmente do que saía de Almadena em direcção à América Central. E onde há navios, há naufrágios. O primeiro registo arqueológico que se conhece, relativo a mercúrio em naufrágios, ocorre em Padre Island, local onde se perderam 3 navios espanhóis, em 1554. A escavação de um navio, também ele espanhol, da armada de 1559, comandada por Luna, em Emanuel Point, na Florida leva igualmente à descoberta de mercúrio destinado à refinação de ouro.

No século XVIII, vamos mais uma vez encontrar o mercúrio, parte do carregamento dos galeões espanhóis Nuestra Señora de Guadalupe e Conde de Tolosá, naufragados em 1724 na baía de Samana, no que é hoje a República Dominicana (a carga de mercúrio totalizava cerca de 400 toneladas e era destinada às fundições do Novo Mundo; os galeões, com destino em Vera Cruz, México, foram atingidos por uma tempestade a 24 de Agosto de 1724, afundando-se, com toda a carga e cerca de 650 passageiros).

Foi também encontrado mercúrio no local do naufrágio do San Pedro de Alcantara, em Peniche, um navio espanhol naufragado em 1786, bem como nos naufrágios do Lewis, afundado em Duxbury Reef, e do Winfield Scott, perdido na costa norte de Anacapa Island, ambos na segunda metade do século XIX.

Em Angra do Heroísmo, num barco anónimo que se escavou em 1998, a descoberta de um balde de madeira – completo e com a sua alça em corda – conduziu à recuperação de uma pequena quantidade de mercúrio a partir da filtração cuidadosa dos restos orgânicos do interior do balde.

Mais tarde, aquando do desmembramento peça a peça do navio recuperou-se, por entre as cavernas e o tabuado, quase um litro do mesmo metal, das dezenas que ainda por lá havia. Como se tornava difícil recolher um liquido de um outro meio liquido, a solução foi a de se recorrer a seringas, no sentido de se poder aspirar o mercúrio para dentro de frascos de vidro que levávamos posteriormente para a superfície. E que o mercúrio forma amálgamas com os metais preciosos tornou-se evidente demais para uma das nossas mergulhadoras: ao recolher algum mercúrio com as mãos desluvadas, ficou sem metade da aliança de casamento em ouro…

 

Referências:

1) Baía de Angra do Heroísmo, Kodak Elite 400

2) http://alexandre-monteiro.blogspot.com/2004_06_01_alexandre-monteiro_archive.html